segunda-feira, 31 de maio de 2010

Elementos integrantes do processo educacional e a Educação Domiciliar (Avaliação)

Avaliação
A avaliação se mostra como um dos elementos mais característicos da educação oficial. Afinal, é através dela que se pode quantificar e qualificar os progressos obtidos através do processo de ensino-aprendizagem. E, como tal, não pode ser ignorada pelas proposições da modalidade domiciliar de educação.
Frente uma proposta diferenciada de educação (como a domiciliar), o processo de avaliação a ela vinculado também deve ser diferenciado. É necessário que se realize um trabalho minucioso para elaborar a forma mais adequada de averiguar os progressos dos alunos do lar.
Em uma realidade na qual haja uma instituição reguladora, a avaliação se torna ainda mais imprescindível, uma vez que é através dela que a instituição poderá comprovar o aprendizado do educando para, então, lhe conferir a certificação relativa às capacidades desenvolvidas/adquiridas.
Entretanto, deve-se considerar dois fatores essenciais quando da proposição de qualquer forma avaliativa para a educação domiciliar. Primeiramente:


Há de se distinguir, inicialmente, “Avaliação” e “Nota”. Avaliação é um processo abrangente da existência humana, que implica uma reflexão crítica sobre a prática, no sentido de captar seus avanços, suas resistências, suas dificuldades e possibilitar uma tomada de decisão sobre o que fazer para superar os obstáculos. A nota, seja na forma de número (ex.: 0-10), conceito (ex.: A, B, C) ou menção (ex.: Excelente, Bom, Satisfatório, Insatisfatório), é uma exigência formal do sistema educacional (VASCONCELOS, 1992, p. 33).


De acordo com a citação apresentada, não se deve cair no engano de se confundir avaliação com “notificação”, ou seja, com a emissão de pareceres classificatórios (as notas).
Em segundo lugar, também não se pode ignorar que, apesar de seu papel fundamental, por vezes a avaliação tem sido uma forma de segregar aqueles que não alcançam o “patamar” proposto. Com efeito, como afirma Vasconcelos (1992), de forma corriqueira, aquele que instrui a criança deixa de acompanhar seu “crescimento” para agir como um detetive, procurando provas que a “incriminem”, ou seja, age para provar sua incapacidade e puni-la através das notas.
É fundamental construir um panorama dos progressos realizados pelo educando. Porém, a classificação por meio de notas, apesar de sua exigência por parte do sistema educacional, pode acabar se tornando uma espécie de violência simbólica1.
Conclui-se, então, que uma proposta diferenciada de avaliação para a educação domiciliar, não somente permite uma adequação efetiva às suas características particulares, como possibilita a negação e crítica dos modelos excludentes de notificação utilizados em larga escala pelo sistema educacional escolar.
Segundo Gutiérrez e Prieto, “a avaliação é conseqüência do projeto educativo.” (1994, p. 129), o que é corroborado por BAMBERG et. all. (2006, p. 10):


Além do atendimento à legislação específica, o projeto pedagógico corporifica o processo ensino-aprendizagem. Isso significa que quando se pensa o processo avaliativo numa perspectiva diagnóstica, isto é, avaliar como a ação global se constitui num meio para atingir uma idéia ou projeto, estamos colocando em foco a observação das condições da realidade a fim de fazer as mudanças que se fazem necessárias para que ela se oriente na direção dos objetivos propostos.


Neste mesmo sentido, Luckesi afirma que a avaliação deve andar lado-a-lado com o planejamento, com o fim de demonstrar se o processo tem se mantido coerente com sua função social e funcionalidade prática. O autor afirma que a avaliação tem uma função crítica, não no sentido de apontar falhas neste ou naquele participante (ou função) integrante do processo, mas sim de “analisar e verificar onde está havendo estrangulamento de um curso de ação e como ele pode ser superado” (LUCKESI, 2007).
De acordo com Gutiérrez e Prieto, uma avaliação alternativa à tradicional se fundamenta em dois aspectos primordiais:


  • identificação dos referentes básicos do processo de avaliação: quem avalia quem, como se avalia, etapas da avaliação, grau de coerência entre a filosofia pedagógica e as técnicas de avaliação, grau de coerência entre o quantitativo e o qualitativo;
  • identificação dos eixos básicos a avaliar: apropriação de conteúdos, relações com o contexto, compromisso com o processo, produtos conseguidos, envolvimento na comunidade com grupos e com a rede (GUTIÉRREZ e PRIETO, 1994, p. 128).


Com relação aos aspectos a serem avaliados, os mesmo autores pontuam os seguintes: apropriação de conteúdos; desenvolvimento e mudança de atitudes; desenvolvimento da criatividade; capacidade para se relacionar e obtenção de produtos.
Já Luckesi (1998), em seu texto “Verificação ou Avaliação: o que pratica a escola?”, vota pelo abandono do caráter classificatório das ações aferidoras escolares, sugerindo o seguinte procedimento em três etapas:


  1. coletar, analisar e sintetizar as manifestações cognitivas, afetivas e psicomotoras dos educandos;
  2. atribuir qualidade a essa configuração a partir de um padrão mínimo de condutas validado por educadores e especialistas;
  3. e tomar decisões sobre as condutas docentes e discentes a serem seguidas diante dos resultados apresentados (se negativos, que se encontrem saídas para que todos os alunos cheguem ao padrão mínimo, se positivos, que se analise a melhor forma de prosseguir com os trabalhos).


Diante do exposto, considera-se que a avaliação tem significado real somente quando apresenta como objetivo um diagnóstico do processo de ensino-aprendizagem, com o fim de constituir um direcionamento para as ações posteriores. Ou seja: avaliar-se-á o processo, e não o sujeito.
Esse conceito foi aplicado durante as práticas de monitoramento e intervenção sobre o processo de ensino-aprendizagem acompanhados e descritos nestes artigos. Durante a observação das atividades realizadas com o fim de constatar os progressos do aluno domiciliar em termos de alfabetização, percebeu-se que o mesmo estava apresentando um bom progresso, entretanto, com algumas dificuldades de leitura e escrita de palavras com mais de uma sílaba, bem como de palavras mais complexas (quais sejam: aquelas com maior complexidade na relação grafema-fonema).
O bom desempenho na relação grafema-fonema pode ser percebido através do seguinte quadro – elaborado a partir de avaliação realizada cinco meses após o início do processo de alfabetização:


Como o aluno escreveu
Forma correta de escrita
TAD
TAD
BATMAN
BATMAN
FIG
FIG
BI∂MAN
BIG MAN
CAT
CAT
JAT
JET
BE2T
BEST
MAD
MAD
FAN
FAN
DAD
DAD
VAN
VAN
MET
MET
BET
BET
HOT
HOT


Como pode-se observar, em se tratando de palavras monossílabas não há grandes dificuldades, salvo em momentos nos quais os fonemas se confundem com relação ao grafema correspondente, como no caso de “JAT” e “JET” que são, sonoramente, muito parecidas.
Da mesma forma, percebeu-se, através de outras observações que, em se tratando dos conteúdos concernentes à matemática, apesar de um ótimo desempenho na resolução mental de problemas envolvendo a soma (bem como o início da apropriação da subtração), havia dificuldade quando do momento de transcrever essas operações. Há de se ressaltar que os pais, a princípio, não perceberam tais problemas durante as “aulas”, sendo necessária a avaliação para que a constatação fosse feita.
Neste sentido, os pais demonstraram certa preocupação, questionando se a criança estaria além ou aquém do esperado. Com efeito, diante das contribuições teóricas apresentadas até o momento, seria incoerente classificar o aluno domiciliar como além ou aquém do que deveria. Ao contrário, foi afirmado aos pais-mestres que a avaliação foi positiva por demonstrar o que já se conquistou e o que ficou pendente do planejado inicialmente, e que, agora, as lacunas explicitadas deveriam ser trabalhadas com maior ênfase, a fim de sanar os problemas não identificados anteriormente – o que foi aceito de bom grado (e com alívio) pelos pais pesquisados.
Por fim, em termos mais práticos, Gutiérrez e Prieto sugerem que uma das melhores formas de avaliação é através do desenvolvimento de produtos, ou seja, criações intelectuais dos próprios educandos – como redações, por exemplo. Segundo os autores, os alunos, ao final de um período de aprendizagem, deveriam produzir trabalhos baseados no que, efetivamente, assimilaram do conteúdo mediado.


A proposta de um texto alternativo e de construção do próprio texto tem como condição básica a avaliação e auto-avaliação permanentes. Sem dúvida a instituição encarregada do sistema levará um registro dos avanços dos estudantes, que de alguma forma será mensurável, mas o segredo do processo passa pela co-responsabilidade, pela maneira em que os sistemas coercitivos da avaliação são um contra-senso na educação à distância (GUTIÉRREZ e PRIETO, 1994, p. 128).


Como visto, a produção realizada pelo próprio filho-aluno serviria como parâmetro de avaliação para os pais, para a instituição reguladora (caso houvesse uma) e para o próprio educando, que poderia averiguar seu nível de desenvolvimento.


Já não se trata daquilo de “se respondeu bem, vá adiante”. O prosseguimento do processo é mais digno e conseqüente: o interlocutor, ao obter o produto, julga se pode seguir adiante e o faz com a alegria e o gozo da obra realizada. Insistimos, não estamos deixando toda a avaliação por conta do interlocutor, mas também insistimos: para que a avaliação seja formativa o interlocutor tem que ser agente ativo de seu processo (GUTIÉRREZ e PRIETO, 1994, p. 132).


Dessa forma, a avaliação se torna uma responsabilidade e um instrumento de todos os atores envolvidos no processo de ensino-aprendizagem.
Ainda sobre os produtos, afirmam que esses “[…] são tão palpáveis que dão à educação uma maior seriedade: evitam o azar ligado à resposta acertada e às tensões próprias das provas tradicionais. Os produtos são a melhor prova que existe para comprovar a aprendizagem” (GUTIÉRREZ e PRIETO, 1994, p. 131).
Apesar de todo o exposto até o momento, considera-se este um trabalho meramente introdutório, haja vista a necessidade de futuras pesquisas e análises mais aprofundadas. Permanece a sugestão para futuros trabalhos que tratem das especificidades de uma avaliação voltada, especificamente, à educação domiciliar.
1Essa expressão foi utilizada por Pierre Bourdieu para se referir às ações de dominação e opressão que estão enraizadas na cultura geral de tal maneira que são consideradas naturais e justificadas.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Elementos integrantes do processo educacional e a Educação Domiciliar (Material Didático)

Material didático
Considerando a falta de material científico específico sobre a educação domiciliar, bem como de estudos relativos à produção e aplicação de materiais didáticos direcionados a esse sistema, para tratar do assunto, buscou-se amparo em aportes teóricos relativos à modalidade conhecida como “educação à distância”. Considera-se que essa “ponte” entre as formas de ensino pode ser realizada devido a proximidade de ambas – em especial no que tange a produção de material didático.
Pela própria natureza de um ensino ministrado pelos pais, o material didático adquire um papel diferenciado e, por que não, mais importante do que nos processos de educação escolar.
Ao tratar da educação à distância, Gutiérrez e Prieto (1994) afirmam que, nessa modalidade, o material é responsável pela mediação que, em termos escolares, é realizada pelos professores. Dessa forma, os materiais didáticos devem possuir características marcadamente diferentes, desde seu planejamento até sua utilização.


A diferença passa inicialmente pelo tratamento dos conteúdos, que estão a serviço do ato educativo. De outra forma: o temático será válido na medida em que contribua para desencadear um processo educativo. Não interessa uma informação em si mesma, mas uma informação mediada pedagogicamente (GUTIÉRREZ e PRIETO, 1994, p. 62).


Tal concepção também é compartilhada por Sales, que afirma ser “o material didático […] um elemento mediador que traz em seu bojo a concepção pedagógica que norteia o ensino aprendizagem” (2005, p. 3).
Em outros países, nos quais a educação domiciliar já é uma realidade concreta, há uma enorme gama de materiais didáticos elaborados especificamente para essa proposta de ensino. Segundo Boudens (2002), nos EUA há uma autêntica “indústria do ensino em casa”, responsável pela produção de material de apoio como: vídeos, jogos, recursos audiovisuais, livros didáticos, módulos de ensino (instrução programada), cursos por correspondência, etc.
Como já foi afirmado, seria inconveniente importar esse material tendo-se o único cuidado de traduzi-lo. O ideal seria a produção de material por parte dos próprios brasileiros, baseando-se na realidade (e, porque não, diversidade) cultural característica do Brasil1.
Diante da necessidade de se produzir material didático específico para a educação domiciliar no Brasil, considera-se que se torna imprescindível uma elaboração consistente teoricamente e muito bem planejada – devido à natureza diversificada da referida modalidade e de seu distanciamento da educação presencial.


O fato de que a modalidade à distância esteja centrada não no professor-educador-que-desaparece, mas nos materiais de instrução, que têm de ser previamente planejados, elaborados, validados e distribuídos, traz uma série de características que é preciso conhecer-se e saber aplicar pedagogicamente com muito mais eficácia e precisão do que na modalidade presencial. Caso contrário, os riscos são maiores e os fracassos poderiam ser irreparáveis (GUTIÉRREZ e PRIETO, 1994, p. 14).


Os autores, tratando da educação à distância, afirmam que a necessidade de um bom planejamento para a produção de materiais didáticos específicos reside no fato destes adquirirem uma função de mediação do conhecimento muito mais profunda do que na educação presencial. Tal realidade é verídica, também, com relação ao material requerido para a educação domiciliar.
Gutiérrez e Prieto (1994) ainda apresentam quatro momentos básico da produção de materiais destinados ao ensino à distância: produção; produto; distribuição e uso.
Segundo os autores, essas etapas estão presentes na elaboração e efetiva utilização de produtos didáticos que, muitas vezes, caem na armadilha do consumismo capitalista, ou mesmo da educação tradicional – conservadora e desprovida de significado. Portanto, afirmam que se faz necessária uma prática de produção pautada, não em um planejamento de vendas, mas em um planejamento educacional, a saber: participativo, dinâmico, contextualizado e que objetive a construção do sujeito que estará se utilizando dos materiais como mediação do conhecimento.
Para tanto, sugerem três fases de tratamento para o material:


a) tratamento com base no tema – trata da delimitação dos conteúdos a serem trabalhados, bem como de recursos pedagógicos com a finalidade de tornar as informações acessíveis, claras e bem organizadas;
b) tratamento com base na aprendizagem – cuida dos exercícios que irão enriquecer o texto, efetivando o processo educativo e o aproximando das experiências e do contexto do aluno;
c) tratamento com base na forma – o último tratamento do material refere-se à apresentação visual do material, ou seja: diagramação, ilustrações, tipos de letras, cores, etc.


Partindo da lógica dessas etapas, os materiais didáticos domiciliares precisariam, em primeira instância, de um currículo bem elaborado e coerente com as exigências sociais em termos de conhecimentos e desenvolvimento de competências. Entretanto, esses conteúdos deveriam ser articulados com a realidade dos alunos. Afinal, uma vez que a “adaptação do ensino à criança” é uma das vantagens apontadas pelos defensores da modalidade, o material didático necessita de uma flexibilidade que permita essa adaptação ao contexto do filho-educando.
Além disso, um elemento que não deve ser descartado é a apresentação visual dos artefatos educativos. Considerando-se que a criança terá uma “relação” mais próxima do material, este deve ser agradável e atrativo esteticamente, instigando sua utilização e evitando eventuais “cansaços”.
Ainda sobre a produção de material didático, Sales (2005) pontua as seguintes características como necessárias para os instrumentos de aprendizagem: interatividade; sequenciação de ideias e conteúdos; relação teoria-prática e auto-avaliação.
Dentre os quatro pontos apresentados, ressalta-se a “interatividade” e a “auto-avaliação” como os mais relevantes para a educação domiciliar. O primeiro se refere a uma necessidade decorrente do caráter mais individual do ensino em casa, o que demanda uma maior interação do sujeito com o objeto do conhecimento, ou seja, o aluno deverá ser capaz de “dialogar” com o material didático, utilizando-o para realizar suas próprias análises e reflexões.
Já o segundo ponto se faz importante pelo caráter de autonomia propiciado pelo homeschooling. Através da auto-avaliação o aluno domiciliar pode constatar como está progredindo em relação a sua aprendizagem e, assim, realizar as modificações necessárias em seu procedimento. Dessa forma, o material didático deve ser elaborado de forma a direcionar a criança nesse processo de analisar sua aprendizagem e utilizar essa análise para seu progresso em termos de desenvolvimento educacional.
Ainda sobre o assunto, Sales (2005) ressalta a importância de recursos tecnológicos como suporte didático para o ensino à distância. Segundo a autora,


No ritmo de mudança, temos vivenciado novidades intensas, também, no contexto educativo e o desenvolvimento permanente das tecnologias de comunicação e informação, dentre outras questões, tem potencializado as estratégias educativas, principalmente na modalidade a distância. Este movimento tem suscitado a reflexão e pesquisa entre os educadores, que buscam refletir sobre a educação neste contexto permeado pelas inovações e a constante transformação (SALES, 2005, p. 2).


Essa visão pautada no aproveitamento de recursos tecnológicos é compartilhada por Grando; Konrath e Tarouco (2003). As autoras afirmam que
[…] utilizando sistemas de ensino-aprendizagem altamente interativos é possível oportunizar um ambiente ativo e aberto de aprendizagem onde os estudantes trabalham visando desenvolver seus planos individuais, com base em suas habilidades, conhecimento e interesses. Neste sentido a organização do material educacional em pequenos segmentos que serão agregados em função das necessidades de aprendizagem dos estudantes é altamente desejável (Grando; Konrath e Tarouco, 2003, p. 2).
Entretanto, ressaltam que a utilização das referidas possibilidades tecnológicas devem levar em consideração, não somente questões relativas à ergonomia ou engenharia de sistemas, mas, principalmente, os pressupostos apresentados por teorias de aprendizagem coerentes e direcionadas por um projeto educativo consistente.
Diante dessas sugestões de ordem prática, há de se refletir, também, sobre a questão tida pela maior parte dos autores como a mais importante a ser considerada para a produção de qualquer tipo de material didático: os objetivos pedagógico-políticos dos sujeitos produtores de tais ferramentas.
Segundo Sales, “consciente ou inconscientemente, o planejamento e a constituição do material didático que mediará situações de ensino e aprendizagem, está intimamente relacionado com a concepção pedagógica do produtor desse material” (2005, p. 3). A autora defende que a mídia escolhida como mediadora do conhecimento elaborado será responsável por grande parte do resultado do processo e que, por isso, deve ser potencializada por um planejamento consistente e intencional (não-neutro). Dessa forma, volta-se a compreensão de que se faz necessário um direcionamento curricular adequado.
No caso dos ex-alunos domiciliares pesquisados, todos utilizaram material didático disponibilizado por um sistema norte-americano de educação domiciliar. “Chamava-se ACE. Era um material vindo dos EUA de uma organização chamada Accelerated Christian Education" (Ex-aluno A).
Já no contexto assistido para a produção da presente pesquisa, não utilizou-se um material didático específico, havendo uma seleção de vários objetos educacionais distintos, levando-se em consideração a relevância dos tais para o processo que havia-se proposto. Essa coleta foi realizada dentro de um universo de opções adquirido anteriormente pelos pais (que já pretendiam aplicar a educação domiciliar mesmo antes do contato com o projeto que culminou com este trabalho). Todos os livros didáticos, atividades, imagens, jogos educativos e audiovisuais são de origem estrangeira (USA) e foram elaborados especificamente para o homeschooling. Cabe ressaltar que o material norte-americano foi escolhido por se adequar, não somente à modalidade de educação, mas à opção dos pais por alfabetizar a criança, primeiramente, na língua inglesa.
Poder-se-ia ter escolhido um único material para ser utilizado, entretanto, optou-se pela mescla das diferentes opções, haja vista algumas deficiências encontradas nas mesmas (em termos de metodologia, apresentação gráfica, clareza do conteúdo, etc.). Pode-se citar como exemplo o material Accelerated Christian Education (ACE) – o mesmo utilizado por todos os ex-alunos de educação domiciliar que responderam ao questionário. Segundo as respostas dos ex-alunos, o referido material apresentava o conteúdo de forma clara, dividindo-se em módulos e segmentando as áreas do conhecimento (disciplinas) através de livros didáticos com as instruções, conhecimentos e atividades. Segundo as respostas dos pesquisados, o ponto forte desse material é a sistematização, como pode ser percebido na resposta do Ex-aluno A: “O ponto forte dele foi a sistematização. Com algo sistematizado, fica fácil se organizar”. Entretanto, exige memorização e “[…] era muito repetitivo” (Ex-aluno C). Dessa forma, considera-se que outros materiais poderiam ser inserido em conjunto, suprindo questões como ludicidade, reflexão e outros aspectos não tão bem trabalhados pelo ACE.
Se faz necessário ressaltar, também, que a ordem dos assuntos abordados nos livros didáticos não foi seguida à risca, procurando-se articular os conteúdos com o planejamento realizado em princípio.
Por iniciativa dos pais, em paralelo, foram apresentados para o aluno domiciliar DVD’s educativos da série Litlle Frog, direcionados especificamente à alfabetização (em inglês). Há de se considerar que a base da alfabetização do aluno pesquisado se deu, quase que em totalidade, através desse material.
Os referidos DVD’s são divididos em 3 discos: o primeiro trata do alfabeto e da relação grafema-fonema; o segundo da junção das letras a fim de formar palavras simples (de uma ou duas sílabas, carregando, apenas, relações “monogâmicas” das letras); e o terceiro apresenta a construção de palavras mais complexas (maior número de sílabas e regras mais complexas de construção das palavras)2.
Ainda em análise do material, pôde-se perceber que a concepção de alfabetização utilizada é a sintética, pautando-se no método fônico – ou seja: iniciar com a apresentação das letras e seus valores fonéticos, prosseguindo para a apropriação de sílabas simples, complexas, frase e textos (em uma escala crescente em termos de complexidade).
Apesar da concepção conservadora de alfabetização, o conteúdo é transmitido de uma maneira muito eficaz e lúdica, a saber: de uma história (em forma de desenho animado) cheia de referências, humor, músicas e macetes para a recordação daquilo que está sendo ensinado. Essa eficiência está explicitada, principalmente, quando observado que o aluno domiciliar assistia aos DVD’s, não em seu período de aprendizado, mas de lazer. Ou seja: o material veio a ser reconhecido pela criança como diversão e, dessa forma, foi assimilado com muito mais propriedade. Por fim, o material também traz jogos multimídia de fixação do aprendido (também considerados pelo aluno como diversão).
A eficiência dessas práticas pode ser comprovada pelo progresso do aluno estudado, mas, deve-se ressaltar que o material é de origem estrangeira, se amoldando ao contexto do caso específico apresentado, sobrando a necessidade de uma produção qualificada de materiais direcionados para o público brasileiro (respeitando as condições teórico-práticas apresentadas anteriormente).
Por fim, acredita-se que as análises aqui realizadas abrangeram um caráter mais geral do assunto, buscando amplitude sobre o tema, e não aprofundamento. Portanto, sugere-se um estudo mais específico sobre a questão, culminando, talvez, com futuros trabalhos científicos relativos, mais estritamente, ao estudo da produção e aplicação de material didático direcionado à educação domiciliar – além da possibilidade de adaptação de outros objetos educacionais proveniente de modalidades de educação diversas, bem como a aplicação das diferentes tecnologias nesse processo alternativo de ensino-aprendizagem.
1Tal ação, não somente possibilitaria a utilização de materiais adequados ao país, como propiciaria o surgimento de um novo ramo no mercado de materiais didáticos, sendo interessante, também, em termos econômicos.
2Durante a pesquisa, somente os dois primeiros DVD’s haviam sido utilizados para a instrução do aluno domiciliar.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Elementos integrantes do processo educacional e a Educação Domiciliar (Currículo)

Há vários fatores que permeiam o processo educativo, os quais também devem ser discutidos e analisados de maneira extensiva para que uma eventual experiência de educação domiciliar obtenha resultados satisfatórios. Portanto, passa-se a considerar alguns pontos relevantes em termos didático-pedagógicos, contrapondo as considerações realizadas pelos autores às observações realizadas sobre as experiências práticas.


Currículo

Diante da possibilidade de aplicação de uma educação domiciliar não se pode ignorar o fato de que se faz necessária a constituição de um currículo próprio, criado para atender às particularidades dessa modalidade de educação.


Por currículo se entende a síntese de elementos culturais (conhecimentos, valores, costumes, crenças, hábitos) que conformam uma proposta político-educativa pensada e impulsionada por diversos grupos e setores sociais cujos interesses são diversos e contraditórios, ainda que alguns tendam a ser dominantes ou hegemônicos, e outros tendam a opor-se e resistir a tal dominação ou hegemonia (ALBA apud VASCONCELOS, 2000, p. 99).


Como se pode constatar, o currículo é um elemento do processo educativo que possui grande profundidade, extrapolando o mero conjunto de conteúdos ou um simples planejamento de ações.
Dessa forma, há de se destacar que o planejamento desenvolvido para a experiência prática descrita no artigo anterior não poderia ser considerado um currículo adequado. Aliás, o referido plano nem ao menos poderia ser classificado como currículo, uma vez que contempla, unicamente, alguns assuntos a serem trabalhados, sem apresentar aprofundamento sobre as relações didáticas, políticas e filosóficas que deveriam permear as práticas docentes.
Através das observações realizadas pôde-se perceber que, justamente por essa falta de uma base curricular consistente, houve uma certa debilitação relativa ao direcionamento que os pais deveriam dar durante os momentos de ensino.
Esse défcit no potencial do processo educativo denuncia uma realidade na qual torna-se imperativa a existência de um currículo que possa nortear as práticas da modalidade domiciliar de educação no Brasil.
Seria contraditório propor um “enxerto” no qual se aplicaria à educação domiciliar o mesmo currículo da educação escolar, da mesma forma que seria desaconselhável a utilização de currículos vindos de outros países. O mais adequado seria o desenvolvimento de uma proposta curricular nova e característica para uma versão brasileira da educação domiciliar.
Entretanto, considera-se pertinente discutir, em primeira instância, o rompimento com um paradigma já há muito presente nos processos da educação oficial brasileira. Esse paradigma diz respeito às “Propostas Curriculares” criadas pelo Estado. Segundo Vasconcelos (2000), essas, que deveriam ser apenas orientações gerais para os pedagogos e seus pares, acabam se tornando dogmas, ideias que necessariamente devem ser levadas a cabo. Segundo o autor, é importante que cada instituição escolar “elabore seu currículo, dialogando com as orientações dadas, mas tendo em vista a realidade concreta em que se encontra, fazendo suas opções e compromissos” (VASCONCELOS, 2000, p. 99-100).
Dessa forma, para a elaboração de um currículo coerente com a educação domiciliar, deve-se sim considerar os nortes apresentados pelo Estado, realizando as devidas adaptações para a realidade característica da modalidade, bem como das famílias que venham a aplicá-la.
Tratando, especificamente, da elaboração do currículo, Gutiérrez e Prieto (1994) apresentam características marcantes de um ensino alternativo ao tradicional que, acreditamos, devem ser levados em consideração durante a construção de um currículo para a instrução em casa. Segundo eles, o ensino deve:


  • ser participativo;
  • partir da realidade e fundamentar-se na prática social do estudante;
  • promover atitudes críticas e criativas nos agentes do processo (pai-educador e filho-educando);
  • abrir caminhos para a expressão e a comunicação;
  • promover processos e obter resultados;
  • fundamentar-se na produção de conhecimentos;
  • ser lúdico, prazeroso e belo;
  • desenvolver uma atitude pesquisadora.


Dessa forma, tendo em vista as necessidades da modalidade domiciliar de educação, bem como as características (já apresentadas) de um processo de ensino-aprendizagem consistente, participativo, eficiente e significativo, a construção de um currículo (ou vários) deveria ocorrer de forma sistemática e com um embasamento teórico coerente, tendo como atores todos os envolvidos e interessados na modalidade.
Todo o processo de educação depende de um currículo adequado, o ensino domiciliar não é diferente.
Enfim, conclui-se que a inexistência de um currículo adequado às exigências da educação domiciliar se mostra como um entrave para a implementação desse sistema no Brasil. Assim, antes de qualquer prática relativa a essa modalidade, faz-se necessário discutir e elaborar de forma adequada uma proposta curricular que atenda às especificidade de um ensino que é dado no lar.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Experiências práticas

Análise do universo pesquisado
Para uma melhor compreensão das análises realizadas posteriormente sobre as práticas observadas durante a pesquisa e o referencial teórico utilizado, passa-se a expôr o universo no qual se desenrolou o trabalho de pesquisa que utilizamos como ponto de apoio para as atuais postagens deste blog.
O contexto contemplado pela presente pesquisa diz respeito a uma família que reside no em Santa Catarina e que é formada por quatro indivíduos, a saber: o pai da família, a mãe e dois filhos (um menino com seis anos de idade e uma menina com quatro).
O pai da família também foi ensinado em casa através de um sistema de educação domiciliar estrangeiro (a saber, proveniente dos EUA), recebendo instrução até o equivalente ao segundo grau brasileiro. Nasceu nos EUA, porém passou quase toda sua vida no Brasil, especificamente no Rio Grande do Sul.
A mãe da família pesquisada possui o segundo grau completo pelo sistema convencional de educação (ou seja, escolar) e cursou algumas matérias de bacharelado em missiologia (contudo, não completando o curso). É de descendência italiana, nasceu e se criou no Rio Grande do Sul, sendo filha de agricultores aposentados.
Ambos são fluentes nas línguas portuguesa e inglesa. Já os filhos possuem fluência na língua portuguesa e estão em processo de aquisição da língua inglesa.
Através da observação, o acadêmico-pesquisador constatou, também, que a criança a ser ensinada em casa (filho mas velho), antes de iniciar o processo educativo, já estava familiarizado com as letras do alfabeto, tendo noções básicas da relação grafema-fonema. Entretanto, cabe ressaltar que esse conhecimento se mostrou bastante limitado, sem qualquer demonstração por parte da criança de competências mais elaboradas de leitura e escrita.
Com relação aos conceitos matemáticos, observou-se, também, que a criança em questão já possuía domínio sobre os algarismos e sobre quantidades, apesar de não possuir conhecimentos relativos às operações fundamentais.


Motivos para a escolha da educação domiciliar
Devido à experiência passada do pai da família, bem como a preocupação do mesmo (juntamente com sua esposa) com relação ao tipo de instrução oferecido pelo sistema escolar de educação, optou-se pela modalidade domiciliar de ensino. Entretanto, outras qualidades foram consideradas como determinantes para a referida escolha.
Assim como inúmeros outros adeptos e simpatizantes do homeschooling, os pais pesquisados pontuaram as seguintes características como vantagens desse sistema:


  • melhor acompanhamento do desenvolvimento da criança por parte dos pais;
  • participação mais efetiva dos pais na escolha “do que” e “como” ensinar;
  • maior possibilidade de se trabalhar as aptidões e dificuldades particulares da criança;
  • descontentamento com os resultados do sistema escolar de educação;
  • possibilidade de se adequar o currículo às concepções filosóficas, morais e religiosas da família;
  • avaliar o processo de ensino-aprendizagem de uma forma livre da obrigatoriedade de se expedir classificações (notas);
  • liberdade para se articular o tempo e o espaço dedicados à instrução;
  • adequação à escolha de se alfabetizar as crianças, primeiramente, na língua inglesa;
  • maior desenvolvimento de autonomia intelectual;
  • dentre outros.


Planejamento
Antes do início dos trabalhos docentes, realizamos uma reunião juntamente com os pais-mestres para delinear um planejamento das atividades a serem desenvolvidas durante o período de pesquisa.
Após o diálogo, acordou-se que os conteúdos contemplados durante os momentos de ensino seriam:


  • No tocante à alfabetização, os pais optaram pelo ensino da língua inglesa. Apesar de se pretender alfabetizar o filho-aluno também na língua portuguesa escrita, considerou-se (por experiência própria do pai) ser mais propícia a transição da língua escrita inglesa para a portuguesa do que o processo inverso;
  • Para matemática foi proposto o ensino das operações fundamentais, iniciando pela soma. Isso se faria possível uma vez que a criança em questão já possui domínio suficiente sobre os algarismos e compreensão sobre quantidades;
  • Ainda com relação à matemática se propôs um trabalho com as formas básicas da geometria;
  • Por fim, foi sugerido um trabalho paralelo para o desenvolvimento, tanto da coordenação motora grossa quanto a fina.


Ressalta-se, ainda, que a língua inglesa foi selecionada, não somente para a alfabetização, mas para todo o processo educativo, sendo empregada em todos os momentos de ension-aprendizagem.
Posteriormente, partiu-se para a seleção do material didático a ser utilizado (uma das preocupações principais da mãe da criança a ser ensinada). Diante de várias possibilidades decorrentes de materiais direcionados especificamente para o ensino domiciliar, selecionou-se aqueles que melhor se adequariam ao planejamento proposto. Nenhum material foi escolhido para ser utilizado na íntegra, buscando-se apenas as porções que se mostrassem mais pertinentes ao trabalho proposto.
Optou-se, ainda, por utilizar cadernos de caligrafia e outros materiais direcionados especificamente para o trabalho da coordenação motora. Para tanto, houve acordo que esses elementos não deveriam ser inseridos no período específico de aula, mas sim utilizados como atividades paralelas, podendo ser realizadas pela criança em outros momentos do dia, quando de seu próprio interesse e escolha.
Quanto à divisão de responsabilidades entre os pais, durante o planejamento escolheu-se utilizar o seguinte modelo: o pai, por possuir maior domínio sobre a língua inglesa, seria responsável pela alfabetização, enquanto a mãe se dedicaria ao ensino de matemática.
Durante a primeira semana haveria um acompanhamento pedagógico mais próximo com o fim de analisar os resultados do trabalho, reavaliando o planejamento, procurando a solução para eventuais problemas e sanando dúvidas. Esse apoio pedagógico se manteve durante todo o período de pesquisa e foi requerido, justamente, por não haver uma capacitação própria por parte dos pais para direcionar suas atividades como mestres.
As “aulas” ocorreriam de segunda à sexta-feira, entre as treze e as quinze horas. Na primeira etapa (abrangendo cerca de uma hora) o pai estaria trabalhando com a criança, enquanto a mãe assumiria no restante do tempo.
É importante ressaltar que, apesar do período de ensino apresentado, os pais se comprometeram em utilizar vários momentos do cotidiano da criança para resgatar os conteúdos ensinados, instigando a recordação e a aplicação dos conhecimentos.
A metodologia utilizada para o ensino seguiu os moldes do ensino recebido pelo pai da família enquanto estudante, qual seja: o instrutor apresenta o material didático para o aluno, realizando algumas explicações iniciais e direcionando a criança para realizar suas próprias atividades, acompanhando o processo para eventuais ajustes ou exclarecimentos. Esse modelo parece ser o padrão do ensino domiciliar nos EUA, o que pode ser constatado através das respostas dadas pelos ex-alunos domiciliares pesquisados durante o período de estudos:


Estudávamos por módulos. Eram cinco matérias: Língua (inglesa), ciências, matemática, estudos sociais, e vocabulário. Cada módulo era organizado em etapas onde o aluno praticamente estudava por conta. O professor ou a professora era mais um monitor ou supervisor, pois, não precisava preparar o material (Ex-aluno A).


O Ex-aluno B ressalta, ainda, o papel do pai na instrução como apoio para eventuais dificuldades: “Meu pai relia a parte do livro que eu não estava entendendo e depois me explicava a matéria”.
Apesar de não se determinar um local específico para as “aulas”, através das observações realizadas durante a pesquisa percebeu-se que o ensino ocorreu, na maior parte do tempo, na cozinha (quando dos momentos direcionados pela mãe) e em um pequeno escritório (quando do direcionamento por parte do pai). Entretanto, salienta-se que em determinados momentos, devido a viagens ou visitas, o ambiente de estudo foi transferido para os espaços que haviam disponível.
Essa forma de utilização dos espaços também reflete o exposto pelos ex-alunos domiciliares que responderam a questionário. O Ex-aluno C, por exemplo, afirma que estudava “em casa numa sala reservada para esse propósito e, algumas vezes, na cozinha enquanto minha mãe fazia almoço e outras coisas”.
Se mostra interessante, também, a variação explicitrada pelo Ex-aluno A, que apresenta uma situação na qual há vários alunos domiciliares sendo ensinados ao mesmo tempos:


Havia um espaço separado para estudos. Estudávamos juntos (irmãos e primos) no mesmo local. Cada aluno estava num nível diferente (ano ou grau diferente) e os espaços eram organizados de tal forma que cada aluno tinha o seu próprio espaço. (Ex-aluno A)


Foi possível perceber que, apesar de poucas adaptações, o planejamento proposto foi seguido. Além disso, as observações realizadas demonstram que o processo de ensino-prendizagem em casa tem se enquadrado dentro das expectativas dos pais, uma vez que o filho-educando tem demonstrado um progresso considerável, principalmente em termos de alfabetização.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

A Educação Domiciliar na legislação brasileira

Visão geral
Talvez uma das únicas áreas que tenha desenvolvido uma discussão mais efetiva sobre a educação domiciliar no Brasil seja a legislação. A questão da legalidade dessa modalidade de ensino em nosso país tem sido controversa, gerando pareceres e leituras discordantes e, às vezes, até contraditórios sobre o assunto.
Em seu artigo “Educação vem de berço” (2001), Luciana Vicária apresenta o seguinte depoimento do então secretário-executivo do MEC, Raimundo Miranda: “na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) ou na Constituição não há abertura para que se permita que uma família não matricule obrigatoriamente seu filho na escola de ensino fundamental” (VICÁRIA, 2001, p. 1).
Ainda segundo o ex-secretário, os pais, legalmente, não podem privar seus filhos do convívio escolar e assumir o papel de professores, seja por convicção filosófica, política, ou por alguma presumida capacidade de equivalência relativa ao ambiente escolar.
Ulisses Panisset – Presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE) em 2001 – também considera ilegítima a modalidade de educação domiciliar. Diante do episódio de um casal de Goiás que pediu judicialmente o direito de educar seus filhos em casa, Panisset se pronunciou da seguinte forma ao jornal Correio Brasiliense: “A Constituiçăo e a LDB afirmam que toda criança tem direito de ir à escola. Queremos ver cumprido esse direito” (PRIMEIRA vitória dos pais, 2001).
Sobre o mesmo caso, no artigo “Escola em casa vs escola fora”, do site “A Página”, Antonio Ibañez – ex-secretário da educação do Distrito Federal – afirma que os pais que apoiam a educação domiciliar estão buscando “liberdade para restringir a liberdade de seus filhos” (ESCOLA em casa vs escola fora, 199-, p. 1). Ibañez ainda afirma que a escola não é o único ambiente educacional existente, mas que é imprescindível, pois mescla as classes sociais e as raças, oportunizando um ambiente democrático de desenvolvimento da cidadania.
Note-se que o foco dos argumentos contrários à possibilidade legal de se efetivar a educação domiciliar não está sobre a modalidade em si, mas sobre a inflexibilidade da legislação brasileira em permitir que crianças em idade escolar estejam isentas da matrícula compulsória.
Pode-se concluir, então, que o cerne da discussão não está na legitimidade de se manter a criança em casa, mas nos impedimentos legais concernentes a não se enviar o aluno para a escola.
Já na contramão dos argumentos apresentados, em seu artigo “O direito de escolher a educação escolar em casa no Brasil” (2006), Julio Severo afirma que educar os filhos em casa é legitimado por ser uma “tradição jurídica” no Brasil. Para embasar tal afirmação, Severo recorre à redação de antigas constituições brasileiras que, supostamente, previam a possibilidade de se instruir os filhos no próprio lar. Dentre as citações, destaca-se o seguinte artigo da Constituição de 1946:


Art. 166. A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola. Deve inspirar-se nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana.


De acordo com o autor, “no lar e na escola” se refere a duas modalidades equivalentes de educação previstas constitucionalmente: educação escolar e educação domiciliar. Vale, também, apresentar artigo de conteúdo similar na LDB de 1961:


Art. 30. Não poderá exercer função pública, nem ocupar emprego em sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público o pai de família ou responsável por criança em idade escolar sem fazer prova de matrícula desta, em estabelecimento de ensino, ou de que lhe está sendo ministrada educação no lar (BRASIL, Lei n. 4024/61, 1961) (Grifo nosso).


Segundo Severo, estas e outras amostras das legislações passadas demonstram que a “educação no lar” existiu efetivamente no Brasil e que era legalmente reconhecida pelo Estado, sendo gradualmente suprimida através da história, até ser totalmente descartada pela Constituição de 1988.
Ao analisar tanto as Constituições quanto as LDB’s antigas, pode-se ter margem para interpretar o ensino domiciliar como modalidade reconhecida legalmente pelas mesmas1.
Em que pesem tais argumentos, sua validade restringe-se a demonstrar que a educação domiciliar já foi prevista por lei. Considerando-se que a Constituição e a LDB atuais não mantiveram as redações apresentadas – ou outras de sentido equivalente/similar –, não se pode afirmar que a modalidade teria amparo legal para seu funcionamento no Brasil atualmente.
Não há qualquer elemento na legislação brasileira atual que faça referência diretamente à educação domiciliar, seja a favor ou contra, seja regulamentando ou restringindo, seja possibilitando ou impedindo sua implementação. O que há, sim, são inúmeras leis e diretrizes que perpassam, de uma ou outra forma, as nuanças de uma possível instrução dada no lar.
Para tentar dar uma materialidade legal ao assunto, em 1993 o Deputado João Teixeira solicitou à Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados um parecer sobre a aplicabilidade do estudo no lar. Posteriormente, Teixeira apresentou o Projeto de Lei n° 4657/94. Segundo Boudens, o referido Projeto


autorizava “a prática do ensino domiciliar de 1º grau”, determinando que o currículo obedecesse às normas do MEC, que o grau de desenvolvimento do aluno fosse avaliado semestralmente junto à rede estadual do ensino, que a rede de ensino domiciliar não tivesse fins lucrativos, que os responsáveis (pais) fossem previamente cadastrados no órgão de ensino competente, que o calendário das atividades de ensino fosse apresentado com antecedência à escola na qual seria prestado o teste e que as aulas fossem ministradas conforme programa escolar (!) aprovado pelo MEC (2002, p. 04).


Diante do parecer previamente elaborado, a Câmara rejeitou o Projeto por unanimidade. Entretanto, o parecer não se mostrava contrário à aplicação da educação domiciliar, apenas entendendo ser desnecessária a criação de uma nova lei.
Outro parecer foi requerido em 1997, dessa vez pelo Deputado Salatiel Carvalho. Novamente foi desaconselhada a proposição de uma nova lei. Segundo Boudens (2002), nessa ocasião o relator afirmou que seria impossível o lar ser o locus apropriado para o desenvolvimento de um currículo adequado.
Em 2001 foi a vez do Deputado Ricardo Izar apresentar à Câmara o Projeto de Lei n° 6001/01, através do qual pretendia regulamentar a instrução no lar e propunha que: a educação básica domiciliar fosse equivalente, em todos os aspectos, à educação básica escolar; os pais teriam a responsabilidade intransferível da instrução de seus filhos; e que os alunos que, comprovadamente, recebessem sua instrução no lar estariam dispensados da matrícula obrigatória em instituição escolar e da freqüência mínima de 75% da carga horária anual.
Em sua justificativa, o Deputado afirma que a intenção do Projeto era de aumentar as possibilidades para o sistema educacional brasileiro. Esse intento é justificado por Izar da seguinte forma:


É nosso entendimento que o aprendizado em casa é um direito básico do cidadão. Atribuí-lo com exclusividade ao sistema escolar configura abuso de poder, ingerência indevida da autoridade na vida privada, desrespeito pela liberdade de ensinar e aprender. Obrigar a criança e o adolescente a freqüentar a escola é sujeitá-los à confrontação diária com a violência, o uso de drogas e, principalmente, uma orientação pedagógica nem sempre condizente com as convicções filosóficas, éticas e religiosas de determinadas famílias (BRASIL, Projeto de Lei n 6001/01, 2001, p. 2).


Complementando a tentativa de Izar, em 2002 o também Deputado Osório Adriano elaborou o Projeto de Lei n° 6484/02 o qual regulamentava a instauração do ensino básico domiciliar. Resume-se a proposta do deputado nos seguintes pontos:


  • Os responsáveis (ou tutores designados por esses) teriam o encargo de instruir as crianças no lar, podendo fazê-lo somente após a comprovação de formação superior e disponibilidade de tempo compatíveis com a tarefa;
  • As escolas teriam o dever de supervisionar, orientar e administrar o ensino domiciliar por intermédio de orientadores pedagógicos, além de avaliar o desempenho dos alunos dessa modalidade;
  • A educação pública deveria destinar até 5% a mais das vagas para a educação domiciliar;
  • O regime domiciliar poderia vir a ser cancelado para aquelas crianças que apresentassem fraco desempenho nas avaliações realizadas pelas escolas;
  • A implantação do regime seria realizada gradualmente, levando em consideração as pesquisas e avaliações sobre o mesmo.


Justificando seu projeto, Adriano afirma que a própria LDB carrega a intenção de acolher as mais diversas experiências pedagógicas com o fim de ampliar as possibilidades de educação para os brasileiros.
Além disso, o Deputado ainda argumenta que a educação no lar é uma possibilidade de integrar mais a família e a escola, uma vez que, segundo sua proposta, as duas instituições deveriam trabalhar em conjunto no processo educacional das crianças.
Para dar consistência a seus argumentos, Adriano ainda utiliza dados sobre o que vem acontecendo em outros países com relação ao regime domiciliar, afirmando que “Ignorar […] a experiência, seja por preconceito ou em decorrência de algum dispositivo legal específico, é manter-se fora do universo das novas tecnologias e da nova pedagogia” (BRASIL, Projeto de Lei n 6484/02, 2002, p. 3).
As justificativas apresentadas pelos deputados, em um primeiro momento, demonstram uma fundamentação lógica considerável, e seus argumentos aparentam uma coerência jurídica satisfatória, o que poderia ter culminado com a regulamentação do ensino em casa. Entretanto, em Parecer oficial requerido pela Presidência da Comissão de Educação e Cultura da Câmara sobre os Projetos de Lei, o Deputado Rogério Teófilo relatou o seguinte:


A jurisprudência tem sido pacífica quanto à injuridicidade do tema proposto pelos nobres parlamentares. Em 24 de abril de 2002, o Superior Tribunal de Justiça manifestou entendimento de que a educação dos filhos em casa pelos pais é um método alternativo que não encontra amparo na lei superior (BRASIL, Comissão de Educação e Cultura, 2005, p. 3).


Segundo o relator, a obrigatoriedade da freqüência escolar é resguardada, não somente pela LDB, mas também pela própria Constituição Federal, tornando inviável a implantação da educação domiciliar sem uma reformulação da redação referente à educação apresentada em nossa Constituição e na Lei de Diretrizes e Bases2.
Além disso, Teófilo afirma que,


As justificações das duas propostas contêm argumentos de natureza claramente elitista, pois somente poderiam usufruir do direito ao ensino em casa famílias com formação escolar adequada e tempo disponível, o que restringiria tal direito às camadas da população com alta escolaridade e maior poder aquisitivo (BRASIL, Comissão de Educação e Cultura, 2005, p. 5).


Finalizando, o relator votou pela rejeição dos Projetos de Lei – o que foi repetido pela grande maioria dos parlamentares.
Dessa forma, o Brasil continua sem uma legislação específica sobre a educação domiciliar, mantendo uma constante desconfiança sobre sua aplicabilidade no país. Entretanto, há de se considerar algumas leis e diretrizes que perpassariam de alguma forma as nuanças de uma possível instrução dada no lar. Dessas, com certeza, as principais são encontradas na própria Constituição Federal, que passaremos a considerar a considerar na pró.


Análise Constitucional
Analisa-se, agora, a Seção I, Capítulo III da Constituição Federal de 1988 – que trata do direito à Educação –, dentro da qual encontram-se as questões de maior relevância sobre uma possível experiência de utilização da modalidade domiciliar de educação.
Iniciando, o artigo 205 traz a seguinte redação:


Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (Grifo nosso).


Como se pode perceber, a Constituição considera tanto o Estado quanto a família responsáveis pela educação. Entretanto, em artigos posteriores, faz referência somente a instituições mantidas pelo Poder Público e iniciativa privada, determinando seus deveres e norteando suas ações dentro dessa matéria. Como será possível perceber, ao Estado pareceu coerente manter suas responsabilidades exclusivamente dentro da lógica das instituições escolares.
O inciso I do Art. 206 se apresenta como o primeiro a remeter diretamente à escola, declarando que o ensino deverá ter como base: oportunidades iguais para todos ingressarem e permanecerem em instituições escolares. Esse também é o primeiro texto a ocasionar confusão quando utilizado no contexto de discussão sobre a educação domiciliar. O argumento é que o inciso demonstra a obrigatoriedade de haver uma instrução institucionalizada, invariavelmente, escolar. Entretanto, isso pode ser considerado um erro de interpretação. Note-se: a redação afirma que o ensino deve basear-se na “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”. Ou seja, isso quer dizer que o Estado tem o dever de oferecer educação escolar para todos, sem exceção, e não que o cidadão é obrigado a instruir-se, necessariamente, em uma instituição escolar.
Independente disso, é preciso considerar que, em nosso país, não há qualquer outro tipo de educação oficial que não a escolar e, dessa forma, a escola acaba por se confundir com a instrução em geral. Essa equivalência pode ser percebida em inúmeros pontos de nossa legislação nos quais a palavra “escola” é utilizada para se referir à educação formal – e não especificamente à instituição3.
Pode-se, então, interpretar que o já citado inciso trata da responsabilidade conferida ao Estado com relação ao oferecimento de instrução para os cidadãos, instrução essa que figura como “escola”, mas se refere à educação formal como um todo, podendo englobar outras modalidades de ensino que não a escolar, dependendo de seu surgimento no cenário pedagógico brasileiro.
Inclusive, há de se considerar que a própria lei determina como princípio norteador do ensino brasileiro a existência de diversidade em termos de concepções, modalidades e experiências pedagógicas, o que vem a ser explicitado pelos dois incisos posteriores do mesmo artigo:


II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino (Grifo nosso).


Uma vez que o Estado, através de suas normas legais, fez a opção pela educação escolar para o cumprimento de suas responsabilidades com a prática educacional, seria muito esperar qualquer movimentação do mesmo para a implementação de uma forma de educação domiciliar. Entretanto, como visto no inciso III, mesmo que não haja interesse por parte do setor público, deve-se considerar que também é prevista a “coexistência de instituições públicas e privadas” (Grifo nosso).
Neste ponto vale citar o Art. 209 da Constituição, o qual deixa o ensino livre à iniciativa privada, desde que sejam cumpridas as normas gerais da educação nacional (inciso I) e que haja avaliação e autorização por parte do Poder Público (inciso II). Note-se que não há qualquer obrigatoriedade de que o ensino privado se dê em instituições escolares. Dessa forma, caso haja interesse – por parte de alguma instituição, associação, grupo, igreja ou afins –, há amparo constitucional para iniciativas pedagógicas que não tenham como locus o espaço geográfico da escola, desde que essa prática esteja de acordo com o exigido pela legislação educacional.
De fato, alguns defensores da educação domiciliar têm proposto que a União reconheça a instrução de seus filhos quando estes foram educados em casa, guiados unicamente pelas boas intenções de seus pais. Isso seria um equívoco. Exigir que o Estado reconheça uma instrução livre de sua aferição seria como competir sem a presença dos juizes e exigir uma medalha. Não importa o quão rápido se corra, ou mesmo que se quebre um recordesem a constatação por parte dos organizadores da competição não se pode ser reconhecido como vencedor. Da mesma forma, um sujeito somente poderá ser reconhecido pelo Governo Federal como “educado oficialmente” caso haja comprovação do cumprimento das exigências mínimas previstas por lei para a educação.
Desta feita, uma eventual aplicação da educação domiciliar poderá obter reconhecimento legal somente se houver uma instituição reguladora que possa computar os dados legalmente requeridos, como: desempenho e progresso educacional, conteúdo transmitido, carga-horária, etc. Essa instituição deveria ser avaliada pelo Poder Público para receber, ou não, autorização de funcionamento e expedição de certificados, mediante o zelo junto aos pais para a efetivação das diretrizes educacionais requeridas por lei.
Antes de continuar a análise da Constituição, vale abordar um pensamento que, inevitavelmente, surgirá sobre uma educação domiciliar não-pública. Ao considerar tal proposta, não se pode ignorar que sua necessária natureza privada soa como elitista e direcionada para as camadas mais privilegiadas da sociedade. Essa crítica, entretanto, deve ser relativizada.
Pode-se sim dizer que uma educação privada com fins lucrativos restringiria suas ações e efeitos somente a uma pequena parcela da população que possua condições materiais suficientes para seu custeio. Porém, não se deve esquecer que nem toda instituição privada tem fins lucrativos. Há ONG’s, associações filantrópicas e comunitárias, entre outras, que possuem caráter não-lucrativo. Inclusive, a própria Constituição prevê esses casos e determina que haverá recursos do Estado destinado para os mesmos:


Art. 213. Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que:
I - comprovem finalidade não-lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação;
II - assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades.


Esse artigo contempla, por sua clara redação, escolas caracterizadas como não-públicas. Não poderia ser diferente, uma vez que “escola” é o atual padrão para educação no Brasil. Como visto anteriormente, essa foi a opção do Estado como regra (não que houvessem outras opções).
Entretanto, levando em consideração a utilização do termo no sentido mais amplo em que, geralmente, é utilizado, poder-se-ia dizer que os recursos referidos podem ser destinados a instituições de cunho educacional de caráter privado sem fins lucrativos. Ou seja, uma entidade reguladora de educação domiciliar que não vise lucros poderia vir a ser contemplada pelo benefício, tendo verba para seu funcionamento sem a exigência de gastos para a família dos educandos.
Cabe ressaltar, todavia, que essa possibilidade deve ser considerada bastante especulativa, uma vez que sua aplicação dependeria da análise do Poder Público para uma eventual legitimação.
Retomando a leitura constitucional proposta pelo presente trabalho, cita-se a redação que pode ser considerada uma das mais controversas com relação à educação domiciliar. O artigo 208 da Constituição, inciso VII, parágrafo 3° afirma que “Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à escola”.
Novamente a confusão se aplica devido ao uso da expressão “escola”. Pelos argumentos já apresentados, não há muito mais o que se dizer sobre tal aspecto. Todavia, cabe ressaltar que esse texto deixa claro o dever, tanto do Estado quanto dos responsáveis pelos educandos, em zelar pela efetivação da educação oficial. Caso contrário, o que se tem é um crime denominado abandono intelectual4.
Para muitos, a educação domiciliar poderia vir a ser um escape, uma desculpa para privar seus pupilos de uma instrução elaborada – destinando as crianças ao trabalho exploratório, à marginalidade e ao ócio improdutivo – ou, simplesmente, para não precisar arcar com suas responsabilidades. Para evitar tal atrocidade, volta-se a um conceito anteriormente apresentado: o de instituição reguladora. Esta seria responsável por acompanhar o progresso do educando domiciliar e manter contato com o Poder Público sobre o mesmo.
Uma instituição reguladora seria constitucionalmente necessária para o cumprimento do recenseamento, da chamada e da freqüência dos alunos ensinados em casa.
Finalizando a presente análise, pode-se concluir que, constitucionalmente, não há qualquer impedimento para a aplicação da educação domiciliar, desde que respeitadas as considerações direcionadas a qualquer modalidade educacional existente. O Poder Público optou pela regra da educação escolar, entretanto, os pais podem optar, se preferirem, pela educação domiciliar5 – ressaltando-se, é claro, que o reconhecimento dessa educação por parte do Estado somente se efetivaria caso houvesse uma instituição reguladora que respondesse pela aferição das exigências legais para a “instrução oficial”, e que estivesse autorizada pelo Governo para tal atividade. Dessa forma, legalmente, a aplicação da educação domiciliar seria possível, demandando, todavia, um esforço burocrático comparável ao da abertura de uma escola.
Tais afirmações são corroboradas pelas declarações dos ex-alunos domiciliados que responderam a questionário aplicado durante a coleta de dados para a presente pesquisa. Quando da questão “Você ou seus pais tiveram algum problema legal por causa da educação domiciliar?”, as respostas seguiram os moldes da seguinte: “Nunca tivemos problema desta natureza” (Ex-aluno A). Para fins de contextualização, ressalta-se que os três ex-alunos que responderam ao questionário, apesar de estarem matriculados em uma instituição de ensino domiciliar estrangeira, efetivaram a totalidade de seus estudos no Brasil.
Da mesma forma, quando questionados sobre o nível de certificação que receberam por seus estudos, as respostas se conformaram com a seguinte: “Recebi [certificação] pelo sistema que usamos (ACE). Aqui no Brasil não tenho ainda. Se precisar, faria um curso, ou um supletivo para ter o reconhecimento. Isso não tem sido um problema para mim até o presente momento” (Ex-aluno A. Grifo nosso). O Ex-aluno B responde da mesma forma: “Tenho nos Estados Unidos. No Brasil não, então infelizmente terei que fazer um supletivo para reconhecimento de formação” (Grifo nosso).
Como se percebe, o único impecílio decorrente do homeschooling para as pessoas pesquisadas se restringe à falta de certificação por parte do Estado Brasileiro, constatando-se que não surgiu qualquer outro problema para os ex-alunos ou suas famílias advindo das instâncias legal ou jurídica.
Diante de todo o exposto até o momento, finda-se esta etapa com as conclusões de Émile Boudens:


Afinal, sob as condições de cumprimento das normas gerais da educação nacional e da autorização e avaliação de qualidade pelo poder público, o ensino é livre à iniciativa privada (além de ser dever do poder público), não havendo por que considerá-lo monopólio do sistema escolar (BOUDENS, 2002, p. 5).
Como se vê, a legislação do ensino admite o ensino em casa (“estudos concluídos com êxito”, “processos formativos que se desenvolvem na família”, “formas alternativas de acesso”), mas não como regra. A regra, porém, é matrícula na escola, controle de freqüência, avaliação contínua e cumulativa (a cargo da escola) (BOUDENS, 2002, p. 7).


Ou seja, a legislação Brasileira não possui mecanismos que desqualifiquem a aplicação da educação domiciliar. Ao contrário, a própria Constituição Federal foi lavrada tendo como pressuposto para a educação a pesquisa e experimentação de novas formas de se ensinar com o fim último de conferir aos cidadãos uma pluralidade de possibilidade para que seus estudos (e de seus filhos) ocorra da forma mais adequada e com qualidade.
Entretanto, na mesma medida que as leis brasileiras não proíbem a instrução em casa, também não dispensam regulamentação para a mesma, o que constitui um entrave para aqueles que buscam alguma forma de certificação do estudo por parte do Estado. Não há dispositivos que confiram certificado aos alunos domiciliares, obrigando estes a buscarem outros mecanismos, como a prova do Enem.
Tal situação seria revertida somente com a criação de instituições que fossem responsáveis pelo acompanhamento e avaliação dos filhos-alunos, aferindo os resultados do processo de ensino-aprendizagem e respondendo pelos mesmos diante do MEC.
3 Isso pode ser conferido nas seguintes redações encontradas na Constituição: art. 208, inciso VII, § 3º; art. 213 e art. 214, inciso II.
4 Segundo o art. 246 do Código Penal: “Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar: Pena - detenção, de 15 (quinze) dias a 1 (um) mês, ou multa.”
5 Referindo-se ao direito de escolha dos pais com relação à educação de seus filhos, não se deve ignorar o inciso III do artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que afirma que “Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos”.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...